segunda-feira, 27 de julho de 2015

Domingo de manhã

            E naquele momento, deitada ao lado dele e percebendo os primeiros raios do amanhecer adentrarem pela janela que estava aberta, ela entendeu, com uma clareza incomum, todos os novos sentimentos que inundavam a sua mente. A pessoa deitada ao seu lado, em um sono sereno e profundo, havia lhe proporcionado uma quantidade imensurável de novas impressões, que vagavam inexplicáveis e desconexas, até aquele momento.
            Ela, que havia sentido, mais uma vez, um tipo de paz absoluta, de expansão máxima, de conexão e percepção de todas as coisas, agora olhava um tanto melancólica para o teto do quarto; suas características individuais voltavam a ser estabelecidas e tudo à sua volta retornava à condição anterior, sendo ela limitada, diminuta.
            A sensação curta de plenitude e completa satisfação havia se tornado constante, desde que se apaixonou perdidamente pela pessoa ao seu lado. Ela, que nunca antes amou, agora presenciava, constantemente, o ciclo que vivenciou durante o amanhecer; esse esvanecer, esse distanciamento de si mesmo, que era acompanhado por uma satisfação ilimitada — mas que durava pouco e logo era barrada pelo retorno às condições normais de funcionamento da mente, que voltava a definir objetivos e o indivíduo, bloqueando a sensação de plenitude — apresentava-se, para ela, como uma impressão inexplicável, que não poderia ser definida.
            No entanto, aquele relacionamento, que proporcionava uma quantidade absurda de conhecimento e impressões, acabou por permitir a ela a compreensão de suas sensações maravilhosas e misteriosas, e, exatamente naquela manhã, logo após aquele momento de plenitude, durante a percepção dos primeiros raios solares, ela se tornou capaz de compreender o que se passava em sua mente, foi capaz de determinar, com precisão, todas as suas sensações.
            Todas as suas tentativas desconexas de definição se uniram de um modo misterioso, talvez um único conceito tenha sido o responsável por possibilitar a definição e resolução de todos os outros, que agora emergiam exatos na mente dela. Em meio à sua nova conexão conceitual abrangente, ela percebia o quanto a pessoa ao seu lado havia alterado a sua forma de ser.
            “Não mais possuo uma alma estritamente relacionada a mim; por causa da minha admiração ilimitada, eliminei minha perspectiva individualista, passando a valorizar alguém, externo a mim, muito mais do que agora valorizo a mim mesma.”
            Seus devaneios flutuavam, e, agora que possuía todas as respostas, eram absurdamente satisfatórios, definindo com exatidão os seus sentimentos, sem permitirem o surgimento de dúvidas, de incertezas. Ela se sentia como um cientista que encontrou a proposição exata, irrefutável, que abarcava todas as variáveis e lhe permitia enxergar as coisas da maneira mais próxima de como elas realmente são.
            “Antigamente, quando possuía uma alma limitada, estreita, via-me, geralmente, completamente desesperada, completamente abismada perante a dimensão do espírito e a minha pequenez. Essa sensação desesperadora me acometia constantemente, e finalmente sou capaz de entender o motivo: eu não possuo objetivos longínquos e inverificáveis, que me impeçam de encarar a minha verdadeira condição existencial. Anteriormente, quando eu possuía essa constituição limitada e egoísta, deparava-me com o desespero mais dilacerante, sempre que alcançava um de meus objetivos palpáveis. Perante a destruição do meu objetivo, deparada com a ausência de uma estrutura que mascarasse minha pequenez e todo o pavor que essa pequenez me proporcionava, eu me sentia tentada a arriscar algo, tentada a agir, a fazer alguma coisa que eliminasse essa sensação sufocante de impotência.”
            Enquanto desenvolvia seus pensamentos complexos, ela permanecia imóvel, olhando absorta para o teto, com um olhar profundo, que parecia enxergar em demasia. A luz solar, que naquele momento era capaz de iluminar todo o quarto, parecia acompanhar a sensação de esclarecimento dela, que permanecia deitada.
            “Quando passei a valorizar outra pessoa, muito mais do que a mim mesma, perdi a estrutura habitual da minha mente, tornei-me uma pessoa destituída de alma. Eu não mais sou diminuta, não mais me sinto desesperada perante o desaparecimento dos meus objetivos, mas muito pelo contrário, agora, após a destruição de um objetivo, eu me sinto completamente satisfeita, potente, feliz. Sem uma alma diminuta e exata, sou capaz de alcançar e me tornar apenas espírito, dessa forma obtendo o desejo mais primordial e essencial da nossa mentalidade.”
            Assim como o quarto, sua mente se tornará completamente iluminada. As impressões, anteriormente indecifráveis, que tanto a incomodavam e a deixavam ansiosa, apreensiva, agora possuíam uma explicação irrefutável e, por terem se tornado racionais, não mais incitavam expectativas exageradas e descabidas.
            Entretanto, mesmo sendo ela dotada de uma complexidade e percepção incomuns, ainda era possível identificar a presença de expectativas exageradas, sendo elas voltadas para o conhecimento, para a vontade ilimitada de conhecer. Ela, de forma semiconsciente, pensava que o conhecimento poderia lhe satisfazer por completo, sanando todos os desejos, até mesmo os mais profundos e intrínsecos. Esse ideal profundo fez com que ela se sentisse satisfeita, satisfação essa que ela foi capaz de identificar e reestruturas de acordo com aquilo que ela agora percebia.
            “A nossa mente possui estruturas inatas, que finalmente sou capaz de perceber facilmente. Meu conhecimento se tornou abrangente, permitindo-me refutar e reestruturar tudo aquilo que me influenciava soberanamente, por não ser eu capaz de possuir conhecimento suficiente para alterar minhas impressões. Consigo perceber o quanto o quanto valorizo o conhecimento e o que essa valorização ansiava obter. Por ter obtido meu desejo mais profundo, que é a base de todas as minhas empreitadas, agora possuo a capacidade de entender e refutar todos os meus impulsos. Mesmo assim, ainda sinto a influência das minhas impressões inconscientes; quando encontrei a explicação daquilo que tanto ansiava entender, senti como que, de alguma forma, expandida, e, com essa expansão, mais próxima da imensidão que é o espírito, e isso me deixou satisfeita, feliz. A vontade de potência é intrínseca em nós, mas ela ocorre de forma psíquica, particular, e não tem relação proposições metafísicas. Possuidora de um conhecimento reservado para poucos, sinto-me capaz de refutar qualquer impressão inconsciente, o que me permite possuir uma existência completamente consciente.”

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