sexta-feira, 17 de julho de 2015

O veredicto

             Devaneios à parte, eu ainda estava apreensivo com a decisão do diretor, com relação a minha permanência na escola. Eu esperava pela expulsão, e essa espera tinha um gosto de renovação, de potencialização e de ampliação de minhas possibilidades; queria recomeçar tudo de novo, em um lugar onde me sentiria bem. A escola ligaria para a minha casa, determinando um dia em que eu deveria me apresentar ao diretor, para que esse me comunicasse seu veredicto. Quatro dias já haviam se passado e a escola ainda não havia ligado. Dois dias após a briga, meus pais foram até a escola e conversaram com o diretor, que não lhes forneceu nenhuma informação sobre o meu futuro acadêmico. Ele havia resguardado sua decisão para transmiti-la apenas a mim, em uma reunião a sós comigo. O diretor disse que eu já tinha idade suficiente para me responsabilizar pelos meus atos, e que a melhor maneira de criar um adulto de sucesso, era incumbindo o jovem de responsabilidades. Enquanto o diretor se abstinha de transmitir sua decisão a mim, restava-me apenas aguardar.
            Utilizei minha “folga forçada” para ler; ia até a grandiosa estante de livros do meu pai, que ficava no escritório, e lia os livros que me chamavam a atenção. Deleitava-me em meio às histórias mais incríveis, ficava fascinado com as maneiras mais peculiares de se interpretar as coisas e me impressionava com as personalidades mais magnânimas e corajosas. E assim eu fui conduzindo os meus dias, respirando do ar mais puro e renovador.
            Seis dias após a briga, durante uma tarde ensolarada e de clima ameno, recebi, finalmente, o telefonema que eu tanto aguardava. Fui pego de surpresa pelo toque do telefone, que ficava no escritório; interrompi a leitura de um livro do Sartre, e atendi ao telefone. Depois de uma conversa curta, fui me aprontar, pois segundo a informação que recebi, eu deveria, ainda naquela tarde, comparecer à escola para conversar com o diretor.
            Como não queria incomodar meus pais, que estavam trabalhando, fui de ônibus até a escola. Chegando lá, anunciei para uma das secretárias que eu estava ali porque fui chamado para conversar com o diretor. Ela me pediu para aguardar, enquanto anunciava ao diretor minha chegada. Sentei em um dos sofás da secretaria, e após alguns minutos, fui chamado pelo diretor em pessoa, que veio até a secretaria para me conduzir à sua sala. Havia somente eu, sentado em um dos três sofás da secretaria, o que facilitou a identificação por parte do diretor, referente a quem estava ali para conversar com ele.
            — Boa tarde. Carlos Oniri?
            — Sim, sou eu.
            — Acompanhe-me até a minha sala — respondeu indiferente, pronunciando parte do que falou já de costas para mim, iniciando o caminho rumo à sua sala.
            Levantei apressado e comecei a segui-lo. O diretor era um homem em torno dos quarenta e cinco anos de idade; suas marcas de expressão faziam-no parecer ainda mais velho. Eu o havia visto apenas algumas vezes, durante alguns anúncios que ele fazia no pátio, para todos os alunos; desde essas breves aparições, eu sentia-me repugnado por causa do seu olhar prepotente e destituído de qualquer intensidade proveniente das profundezas humanas; a sua expressão, quando falava, suscitava um asco profundo em mim.
            A sala do diretor ficava afastada da secretaria, encontrando-se ao final de um corredor não muito longo, à esquerda da secretaria.
            Adentrei a sala do diretor, encostando a porta logo em seguida. Nunca antes havia entrado naquela sala, e a primeira impressão que ela me transmitiu foi aconchegante. Havia uma grande janela, com vidros fumê, no lado esquerdo da sala, com uma cortina vertical, que naquele dia estava completamente aberta, permitindo que quem estivesse na sala pudesse ver o belo jardim que ficava na frente da escola; o lado direito era todo preenchido por prateleiras, que continham livros e arquivos; ao fundo ficava a mesa do diretor, com três cadeiras à frente e um grande quadro, com a imagem do fundador da escola, atrás; pendurado exatamente na metade da altura da parede.
            — Sente-se, Carlos — disse o diretor, ajeitando-se em sua cadeira.
            Eu escolhi a cadeira do meio, dentre as três em que poderia me sentar. Enquanto me sentava, imaginei a grande quantidade de filhos acompanhados pelos pais, que já se sentaram naquelas cadeiras; não tive tempo de desenvolver essa linha de pensamento, pois fui interrompido pelo diretor, que proferia o seu sermão inicial.
            — Não sei o que se passa na cabeça de jovens como você, realmente não consigo vos entender. Mesmo em meio a um ambiente de doutrinas elevadas, vocês conseguem se sentirem insatisfeitos e são nocivos a vocês mesmos e a todos. Eu realmente não consigo entender; utilizo a minha juventude como parâmetro e continuo perplexo com vocês; tanto ódio, tanta rebeldia, para quê? Contra quem? Mas não lhe chamei hoje para conversar porque queria explicações sobre a juventude, acho que nem vocês mesmos estão cientes de seus atos; chamei-lhe porque almejo saber a sua versão da história, e também lhe informarei a decisão que tomei a respeito da sua permanência no colégio. Primeiramente, qual foi o motivo da agressão? — disse-me isso olhando com nojo, situando-se em seu pedestal — que ele mesmo havia criado —, de onde se valorizava em excesso, desprezando a opinião e os sentimentos de todos os outros.
            — Defendi-me de um agressor. Talvez tenha me excedido em minha autodefesa, mas basicamente é isso; se alguém teve um motivo para brigar, esse alguém é o Arthur — respondi de maneira sucinta, sem titubear, com um tom de voz tranquilo e convicto, olhando diretamente para os olhos do diretor.
            Percebi que ele se sentiu confuso com a maneira que respondi ao seu questionamento. Talvez essa não fosse a atitude comum, como os alunos respondiam a ele, não tenho certeza; só sei que após aquela resposta a conversa se transmutou quase que por completo.
            — Como pôde se descontrolar daquela maneira?
            — Não fui capaz de controlar meus impulsos durante aquele momento extremo; voltei a mim após ter dado uns três socos enquanto o Arthur estava caído; essa é uma atitude da qual eu não me orgulho.
            — Você tem consciência dos seus atos, isso é um começo satisfatório; quem sabe um dia você se torne um grande homem como eu.
            Num átimo eu me situei em meio àquela conversa. O diretor não sentia que eu valorizava sua posição, sua personalidade. Em sua ânsia por sentir-se potente e satisfeito consigo mesmo, ele queria se sobrepor a mim, e sentir que eu valorizava tudo o que ele era. Resolvi brincar com aquele homem vaidoso e inseguro.
            — O que é um grande homem na sua concepção?
            — É um homem esforçado, de intelecto avantajado, que é capaz de alcançar o topo da hierarquia social — ele falava de maneira rápida, tentando expressar um ar de segurança que não possuía, sendo essa sua atitude facilmente perceptível.
            O diretor percebeu minha a minha expressão vazia, digna de quem não valoeiza e não concorda, em nenhum aspecto, com o que acabava de ser dito. Sentindo-se frustrado e afrontado, ele fez a mesma pergunta para mim.
            — O que é um grande homem para você?
            — Um grande homem é alguém convicto de si, que não precisa de outrem para validar os seus conceitos e crenças — respondi me concentrando para analisar a maneira como ele iria reagir à minha definição, que atacava ele de maneira oculta.
            — Você ainda é um jovem inexperiente; um dia você irá reformular seus conceitos, adquirindo parâmetros evoluídos.
            Uma resposta de praxe, e evasiva, sendo pronunciada de maneira rápida e insegura, querendo transmitir uma confiança inexistente, com relação ao que era pronunciado. Ah, e não é que no topo da hierarquia social eu me deparo com um exímio asno. Sua resposta de praxe foi seguida por uma tentativa de mudar o assunto.
— Quero agora informar-lhe minha decisão com relação à sua permanência no colégio...
Ele queria mudar de assunto, mas eu queria brincar mais um pouco, por que não? — Sempre mantendo uma expressão indiferente, eu aproveitei a pausa no final da frase e continuei a conversa antiga.
— Com toda a sua sabedoria, adquirida ao longo da vida, transmita-me um de seus aforismos, que irão me poupar de muitos problemas — Perguntei de maneira séria, alguma parte de mim realmente queria obter uma resposta, sendo o resto de mim apenas zombaria; deixai transparecer a parte que desejava obter uma resposta.
— Você tem que tomar cuidado com a maneira como reage às frustrações.
Finalmente uma resposta sincera, fora de toda a prepotência inicial. Senti que o diretor havia se tornado mais humano e tentei explorar aquele conceito, para tentar entendê-lo.
— O que seria uma frustração para você?
— Ficamos frustrados quando não obtemos o que desejamos. Muitas coisas podem nos frustrar, como o fracasso na obtenção de uma posição elevada na hierarquia social, como não termos tanto dinheiro quanto gostaríamos, como não conseguirmos ter como esposa uma bela mulher.
Eu estava conversando com um homem ultramundano, e, de alguma forma, isso me entristeceu. Vi o que a sociedade me reservava, vi o quanto os homens limitados são valorizados, enquanto os homens elevados são marginalizados, excluídos e desencorajados por todos. Eu não quero ser um estereótipo do homem social, nem quero estar próximo a eles; quero estar perto dos homens que moldam o meio, dos que há muito já aceitaram toda a incerteza, todos os acasos, e todas as incongruências, e que nem por isso sentem-se de alguma maneira reduzidos, mas sim mais fortes e donos de si.
Ficamos em silêncio por um tempo; eu me perdia em meio aos meus devaneios, enquanto o diretor se perdia em meio aos dele. De repente, como que desperto de um cochilo inoportuno, o diretor se lembrou do motivo daquela conversa, e começou a expressar sua decisão.
— Chamei-lhe hoje, até aqui, pois almejo lhe informar minha decisão com relação à sua permanência no colégio. Após conversar com os seus professores, descobri que você é um atleta talentoso, e um aluno inteligente, mas preguiçoso; características que são vistas com bons olhos por mim. Infelizmente, a briga chocou a todos os alunos, chocou até mesmo a mim, que nunca vi, em toda a minha carreira como educador, uma ambulância vir até a escola para buscar um aluno desfalecido e ensanguentado. Para que as pessoas superem esse trauma, é necessário que elas não mais se deparem com alguma coisa que possa lembrá-las disso. Sinto lhe informar, mas você está expulso do colégio Riulop.
Senti-me feliz em demasia, mas mantive minha expressão indiferente. Sentia-me revigorado; estava satisfeito com essa alteração abrupta, que me permitia um novo começo. Sem pronunciar nenhuma palavra, o diretor me acompanhou até a porta da sala, e nos despedimos apenas com olhares.
Já na rua, eu me sentia em êxtase; enxergava possibilidades maravilhosas em todas as coisas, e sentia-me potente e extremamente leve. A vida emanava novos ares, sendo todos eles múltiplos e variáveis, permitindo qualquer tipo de arranjo, qualquer configuração do meu conteúdo conceitual e habilitando uma quantidade incalculável de consequências.
           Um mundo de possibilidades infinitas, e uma vida que se renova a todo momento, onde podemos mudar de lugar, mudar a mentalidade, e começar tudo de novo, e de novo, e de novo. Não será esse, o melhor dos remédios para as dores humanas?

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